No dia-a-dia ouvimos , com freqüência, o termo psicologia ser utilizado. Essa
utilização possui diversos sentidos, por exemplo, quando nos deparamos com um
bom vendedor ou quando ligamos para um amigo que sempre nos ouve com atenção.
Para um dizemos que ele usa de “psicologia” para vender seu produto e para o
outro dizemos que ele é um bom ouvinte, portanto, seria um bom psicólogo. Seria
essa a psicologia dos psicólogos? Não! Essa psicologia , usada no cotidiano das
pessoas , tem a sua importância e é denominada de psicologia do senso
comum. A “psicologia dos psicólogos”, diferente
desta primeira, é a psicologia cientifica.
Sendo a psicologia uma de suas áreas, começarei
explicando o que é ciência.
A ciência compõe-se de um conjunto de conhecimentos sobre
fatos ou aspectos da realidade (objeto de estudo), expresso através de uma
linguagem precisa e rigorosa. Esses conhecimentos devem ser obtidos de maneira
programada, sistemática e controlada, metodológica então, para que se permita a verificação de sua
validade. Assim, podemos apontar o objeto dos diversos ramos da ciência e saber
exatamente como determinado conteúdo foi construído, possibilitando a
reprodução das experiências e de seus resultados. O saber pode , assim, ser
transmitido, verificado, utilizado e desenvolvido.
Essas características da produção científica possibilitam
sua continuidade: um novo conhecimento é produzido sempre a partir de algo
anteriormente desenvolvido. Nega-se, reafirma-se, descobrem-se novos aspectos,
e assim a ciência avança. Nesse sentido, a ciência caracteriza-se como um
processo continuo e dinâmico no qual cada etapa tem seu valor em si mesmo e não
passa por valorização ou hierarquização de sua importância particular. Ou seja,
não há etapa mais importante que a outra, já que uma advém, de alguma forma,
dos conhecimentos obtidos pelas demais anteriores. No contexto da cinofilia, um
exemplo à ser usado seria o da teoria da dominância nas relações sociais dos
canídeos, teoria essa que passou por esse processo. Hoje ela serve como
referência de como se pensava alguns aspectos do comportamento social desses
animais e encontra-se a margem do atual conhecimento histórico cientifico. O mesmo
oocorre como várias outras teorias de diversas áreas cientificas que , ao longo
do tempo , também foram refutadas e descartadas como hipótese plausível.
Outro aspecto importante da ciência é que ela aspira a
objetividade. Suas conclusões devem ser passíveis de verificação racional e isentas
de emoção para tornarem-se válidas para todos ; a ciência deve ter um objeto claro;
linguagem específica, métodos e técnicas rigorosos, processo cumulativo do
conhecimento entre outras qualidades. Sendo assim, o processo de conhecimento
cientifico difere em muito do conhecimento espontâneo do senso comum.
Vamos agora a Psicologia propriamente dita. “Logos” deriva do grego que significa razão;
“Psico” também deriva do grego psyché que significa alma. Portanto,
etimologicamente, psicologia significa “estudo da alma”. A alma ou espírito era
concebida como a parte imaterial do ser humano e abarcaria o pensamento, os
sentimentos de amor e ódio, a irracionalidade, o desejo, a sensação e a
percepção.
Na filosofia, os filósofos pré-socráticos preocupavam-se
em definir a relação do homem com o mundo através da percepção. Com Sócrates
(469-399 a .C)
a Psicologia ganha consistência; sua principal preocupação era com o limite que
separa o homem dos animais. Desta forma, postulava que a principal característica
humana era a razão, esta permitia ao homem sobrepor-se aos instintos, que
seriam a base da irracionalidade. Ao definir a razão como peculiaridade do
homem, Sócrates abre um caminho que seria muito explorado pela Psicologia e
tais teorias são , de certa forma, frutos de uma primeira sistematização na
Filosofia.
Platão (427-347
a .C), discípulo de Sócrates , procurou definir um
“lugar” para a razão em nosso próprio corpo. Definiu esse lugar como sendo a
cabeça. A medula, portanto seria o elemento de ligação da alma com o corpo.
Para Platão, a alma era separada do corpo. Eis que surge Aristóteles (384-322 a .C), discípulo de
Platão. Sua contribuição foi inovadora ao postular que alma e corpo não podem
ser dissociados. Para Aristóteles, a psyché
seria o princípio ativo da vida. Tudo aquilo que cresce, se reproduz e se
alimenta possui sua psyché ou alma. Desta forma, os vegetais, os animais e o
homem teriam alma. Os vegetais teriam a alma vegetativa, que se define pela
função de alimentação e reprodução. Os animais teriam essa alma e a alma
sensitiva, que tem a função de percepção e movimento. E o homem teria os dois
níveis anteriores e a alma racional, que tem a função pensante. Aristóteles
chegou a estudar as diferenças entre a razão, a percepção e as sensações. Esse
estudo está sistematizado na obra Da
anima, que pode ser considerado o primeiro tratado em Psicologia. Seria
interessante aos colegas de cinofilia, a leitura desse estudo.
Estamos no ano de 2013 e as pesquisas em comportamento
canino estão apenas iniciando um processo de compreensão mais profunda sobre a
mente canina. No entanto, os termos psicologia canina e psicólogo canino são amplamente
difundidos no mercado como verdades cientificas e como formas de atuação
profissional aceitáveis. Não defendo aqui se existe uma psique canina ou não,
ou se existe uma psicologia canina ou não. Discorro sobre o uso do termo sem
fidedignidade de nenhuma instituição cientifica. Também coloco que , embora não
seja ilegal o uso do termo, é , no mínimo anti-ético, uma vez que se apodera do
saber de uma ciência (psicologia) dando legitimização falsa a um novo saber –
psicologia canina. Apoderar-se de termos que não são reconhecidos por nenhum
instituto de pesquisa ou entidade de classe, quando não existem cursos de
graduação de psicologia canina e tampouco nenhum que seja reconhecido pelo MEC
é , no mínimo , um equivoco, um auto-engano e uma pretensão nada humilde de
quem os utiliza.
“Terapeutas caninos” existem, são os veterinários, eles
sim são reconhecidos legalmente e eticamente pelos órgãos competentes, como
aptos a realizarem terapias que auxiliem a saúde do cachorro. Portanto , essa
história de não ser treinador, mas sim um terapeuta canino, cabe aos
veterinários afirmarem e não a treinadores desatualizados e pretensiosos do
show business. Por favor, caros colegas, assumam as suas identidades de
adestradores (independente da modalidade de treino e atuação), e limpem as suas
mentes de toda essa terminologia “cool”,
que serve apenas para que o cliente sinta que está contratando um “psicólogo
canino” e não um adestrador. Quem faz isso, presta um grande desfavor a
profissão de adestrador, pois induz , o leigo , ao reforço da velha concepção
que se tem do adestramento de cães, ou seja, de que “adestramento” é algo
desagradável ao cão e que o trabalho do “psicólogo canino” tem um viés mais
“positivo” – e aqui surge a lembrança de outro termo usado: “Adestramento
Positivo”, que em outra oportunidade tratarei também -. A utilização do termo “Psicólogo
Canino” também tem aspecto diminutivo ao termo adestrador, visto que um psicólogo
em nossa sociedade carrega um status de profissão importante na área da saúde. Creio
que o papel desses profissionais equivocados e causadores de equívocos poderia
ser outro, o de re-significar a antiga concepção que se tinha do adestramento,
desmistificando antigos rótulos em relação a profissão sem a necessidade do uso
de termos que iludem o leigo em relação a treinamento de cães. Um psicólogo em
sua atuação, deve basear-se em abordagens especificas, realizar supervisão com
um psicólogo mais experiente e realizar a sua própria terapia; sem ainda
considerar as especializações. Estas são condições exigidas pelo conselho de
ética e pela metodologia cientifica da profissão, para que , assim , não
ocorrem eventos que poderão prejudicar a relação terapêutica e para que ocorra
um processo de avaliação da atuação desse profissional em cada caso atendido.
Também existem procedimentos de registros específicos que devem seguir uma metodologia.
Há ainda quem afirme que existindo as matérias de Comportamento
e Bem Estar Animal e Psicobiologia em faculdades e universidades de Biologia,
Zootecnia e Veterinária, é prova de que a psicologia canina exista. Entender os
mecanismos neuroquímicos e fisiológicos dos seres vivos e como esses mecanismos
se dão no Sistema Nervoso Central e se manifestam com o meio ambiente e em
comportamentos é o objeto de estudo de tais matérias. Essas matérias não
definem o entendimento da psyché (alma)
como seu objeto de estudo nos seres vivos. Já o “psicólogo canino” usa essa
terminologia dando ênfase ao entendimento da psyché (alma) canina.
Isto posto, gostaria de convidar algum “psicólogo canino”
para que apresente o objeto de estudo da sua ciência, a metodologia cientifica
da sua profissão e exemplifique como funciona o registro de seus atendimentos e
os órgãos que validam a profissão e fiscalizam a mesma.
Esta contraditória forma de atuação só tem eco no
show-business, onde o que se vende para o telespectador é a distração sem
compromisso, é o mistério, o encantamento, a pseudociência e soluções que
parecem ser fáceis e rápidas de serem alcançadas (imediatismo como valor de
vida). A grande massa de telespectadores é leiga, entendo esse aspecto em uma
sociedade meramente consumista, no entanto, me assusta treinadores terem esse
conflito de identidade. Por isso continuo afirmando, que o uso do termo é
incorreto.
Vale aqui uma citação de parte do livro “Cão Senso” de
Jonh Bradshaw, publicado pela editora Record, para reflexão –
“Analisar a
Inteligência canina não é simples. Assim como nunca poderemos saber
precisamente como é o mundo interior da emoção canina, (e aqui acrescento,
ele não produz cultura, partes importantes sobre o entendimento humano e a
Psicologia), é provável que nunca
estejamos certos de que os cães pensem do mesmo modo que nós. A ciência, até
agora, tem sido incapaz de dizer-nos o quão conscientes de si mesmos os cães
são, menos ainda de explicar se eles possuem qualquer coisa parecida com os
nossos pensamentos conscientes. Isso não é surpreendente, já que nem os
cientistas e nem os filósofos parecem concordar com o que seja a consciência
humana, muito menos a dos animais. No entanto, é possível examinar,
cientificamente, se os cães podem ou não fazer várias coisas e, depois, inferir
os tipos de pensamentos que poderiam ter sobre isso, se tivermos em mente que,
como cães, podem não ter as mesmas prioridades que nós (ou outros animais),
teríamos na mesma situação”.
Não serão adestradores que utilizam essa terminologia
como diferencial de marketing ou com conflitos de identidade que irão validar
esse saber, mas sim , um corpo de pesquisadores com bagagem de conhecimento
cientifico que irão nomear o termo adequado. Esse termo poderá vir a ser
psicologia canina ou não. E se futuramente for escolhido e validado esse termo,
haverá a necessidade da formatação dessa nova ciência numa grade curricular
acadêmica para que , somente então, os concluintes desse curso de formação,
encham o peito e digam : - “ Eu sou um psicólogo canino “. No entanto, enfatizo
que , as pesquisas mais recentes em comportamento canino têm abordado temas que
buscam compreender a evolução dessa espécie ; aprofundar o conhecimento sobre
seus sistemas sensorial e cognitivo, tendo como referências estudos sobre
neuroetologia, neurobiologia e comportamento animal. Vejo que o adestramento
caminha para uma definição no que diz respeito , não a psicologia dos cães, mas
sim a seus aspectos sensório-cognitivos, cabendo, a cada profissional desse
mercado, o entendimento desses novos estudos e conseqüentemente modificar
posturas gerais em suas atuações como profissionais. Caminhemos todos para um
desenvolvimento e esclarecimento melhor no que diz respeito ao mercado pet. Desenvolver
a cinotécnia, a cinofilia, a medicina veterinária e o adestramento é função de
cada um de nós que atua nessa área; isto, assim sendo, não confunde o leigo e
nos engrandece em nossas atividades profissionais diárias.
Um grande abraço a todos.
Ivan Chitolina – Adestrador Profissional (com muito
orgulho dessa terminologia – Adestrador) e diretor do Centro de Treinamento e
Hospedagem de Cães – Cão do Mato.
José Luís Vettorazzo Biazini - Adestrador Profissional, cinófilo, especialista em comportamento canino e criador.
Bibliografia: “Psicologias” (Ana M. Bahia Bock, Odair
Furtado, Maria de Lourdes T. Teixeira). Editora – Saraiva.
2 comentários:
Gostei muito do texto Ivan! Parabéns!
Que bom que gostou Emmanuelle. O tema e bem atual e creio que eu e o Jota conseguimos esclarecer qualquer dúvida a respeito do uso desses termos. Grande abraço e obrigado por ler e participar do blog.
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